Muitos brasileiros se lembram da década de 1970 pelas vitórias alcançadas pelo país na Copa do Mundo
de futebol e no campeonato mundial de Fórmula 1. contudo, para boa parte da população, aqueles anos foram de sofrimento e
angústia, como lembra este escritor, em comovente autobiografia.
No
dia 20 de janeiro de 1971 era feriado no Rio, por isso dormi até mais tarde. De manhã, quando todos se preparavam para ir
à praia (e eu dormindo), a casa foi invadida por seis militares à paisana, armados com metralhadoras. Enquanto minhas irmãs
e as empregadas estavam sob mira, um deles, que parecia ser o chefe, deu uma ordem de prisão: meu pai deveria comparecer na
Aeronáutica para prestar depoimento. Ordem escrita? Nenhuma. Motivo? Só Deus sabe.
Quando
acordei e vi aqueles homens perguntei para minha mãe o que era. Ela não respondeu e disse que papai tinha saído. Desci, tomei
café e vi as armas na sala. [...]
Não tinha sacado,
mas éramos prisioneiros. O telefone fora do gancho, ninguém saía. O namorado da minha irmã chegou e foi preso, levado embora.
Um amigo de dezesseis anos chegou e também foi levado.
[...]
Tivemos que conviver o dia todo com os caras jogando baralho, botão, vendo novela. À noite, mudou o plantão. Jantar, cafezinhos
e, com mais intimidade, minha mãe pediu para guardarem as metralhadoras num canto da sala.
Minha
mãe me acorda no dia seguinte e se despede de mim. Ela também tinha que ir, junto com a Eliana (minha irmã de quinze anos).
Os caras saíram, trancaram a porta, colocaram minha mãe e irmã no banco traseiro de um fusca azul. E agora? Que fazer. [...]
Duas
semanas depois, toca o telefone. Minha mãe estava solta. Alívio. Meu pai não. Voltei imediatamente pro Rio e encontrei minha
mãe exausta, deitada na sua cama. Tava irreconhecível, muito mais magra. Nos abraçamos e choramos. Tive o pior ataque de asma
de minha vida. Ela tinha estado no quartel da Barão de Mesquita, Polícia do Exército, treze dias numa cela individual. Foi
interrogada várias vezes, sempre com as mesmas perguntas: idéias políticas do meu pai e quem freqüentava a nossa casa. Entre
os interrogatórios, era obrigada a ver coleções de fotos e exigiam que as reconhecesse. Mas ela só identificou a do meu pai
e a da família.
Naquela
época, a censura da imprensa não estava tão rigorosa e todos os dias saíam artigos nos jornais: "Onde está Rubens Paiva ?"
[...]
No dia 20 de fevereiro, o ministro da Justiça Alfredo Buzaid disse para minha mãe que meu pai tinha sofrido “alguns
arranhões", mas que voltaria em breve para casa. [...] Finalmente, no dia 24 de fevereiro, sai no Diário Oficial da União
o que até hoje é a versão do Exército:
“SEGUNDO INFORMAÇÕES
DE QUE DISPÕE ESTE COMANDO, O CITADO PACIENTE, QUANDO ERA CONDUZIDO PARA SER INQUIRIDO SOBRE FATOS QUE DENUNCIAVAMATIVIDADE
SUBVERSIVA, TEVE SEU VEÍCULO INTERCEPTADO POR ELEMENTOS DESCONHECIDOS, POSSIVELMENTE TERRORISTAS, EMPREENDENDO FUGA PARA LOCAL
IGNORADO...”
Em
outras palavras, ele tinha fugido. Foi a versão mais idiota que já inventaram, mas o que fazer? Logo depois veio a censura
da imprensa sobre o caso [...].
Continuamos
morando no Rio e começaram a chegar informações mais terríveis: ele tinha sido torturado e morrera. “Mas como? Não existe
tortura no Brasil.”
Doce
ilusão, estava-se torturando gente como nunca e havia-se criado uma tática mais eficiente: mata-se o inimigo, depois some-se
com o corpo.
[...]
Passei anos da minha vida sem saber se tinha ainda um pai ou não. Lembro-me até que, um dia, já morando em Santos, pensei
ter ouvido minha irmã gritar “papai”. Saí correndo feito um louco, rodei pela casa toda, fui pra rua, procurei
por todos os cantos, mas não o achei. [...] Era engano meu. Ninguém tinha gritado. Sonhei centenas de vezes com meu pai chegando
um dia. Mas foram sonhos. [...]
Rubens
Paiva não foi o único “desaparecido”. Há centenas de famílias na mesma situação: filhos que não sabem se são órfãos,
mulheres que não sabem se são viúvas. [...]
PAIVA, Marcelo Rubens. Feliz Ano Velho. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. p. 67 -72.