Rodrigo havia sido indicado
pela oposição para fiscal duma das mesas eleitorais. Pôs o revolver na cintura, uma caixa de balas no bolso e encaminhou-se
para seu posto, no nobre salão do Centro Republicano. A chamda dos eleitores começou às sete da manhã. Plantados junto da
porta, os capangas (indíviduos que serviam como guarda-costas dos poderosos) do Trindade ofereciam cédulas com o nome dos
candidatos oficiais a todos os eleitores que entravam. Estes, em sua quase totalidade, tomavam docilmente os papeluchos e
depositavam-nos na urna, depois de assinar a autêntica. Os que se recusavam a isso tinham os nomes acintosamente (ou seja,
de maneira proposital e provocativa) anotados. [...]
Rodrigo estava deprimido. Deve ser o calor – concluiu tirando o casaco e desabotoando o colarinho. Passou o lenço
pelo rosto e pensou em que tinha de passar o dia inteiro ali naquela sala desagradável. [...]
O mesário (pessoa que, durante as eleições, fica à mesa onde está a urna
eleitoral controlando o depósito dos votos e a lista dos eleitores) que fazia a chamada gritou:
– Arnesto Tavare Nune.
Apareceu um homenzinho baixo, de ar bisonho (isto é, acanhado, tímido).
– Protesto, senhor presidente! – bradou Rodrigo.
– Por quê?
– Esse sujeito é um impostor. Ernesto Tavares Nunes já morreu.
O presidente dirigiu-se ao eleitor.
– Como é o seu nome?
O homem olhou primeiro para Rodrigo, hesitante, depois para a cédula que um capanga lhe havia posto nas mãos e finalmente
balbuciou, visivelmente embaraçado.
– Arnesto Tavare Nune.
Rodrigo pôs-se de pé.
– Apelo para os membros da mesa e para os senhores aqui presentes que sabem tão bem quanto eu que Ernesto Tavares
Nunes está morto e enterrado.
Fez-se um silêncio.
– Vamos ao cemitério – convidou Rodrigo – e eu lhes mostrarei o túmulo desse cidadão.
O presidente da mesa coçou a cabeça com a ponta da caneta.
– Dr. Rodrigo, nós não temos tempo para essas coisas, e mesmo a lei não nos autoriza...
– Ora, quem quer falar em lei! Vamos ao registro de óbitos, então.
– O homem vai votar e o senhor depois lavra (registra) o seu protesto.
– A velha história! Meu protesto não será levado em conta! É a indecência de sempre!
– Assine o seu nome aqui – disse o presidente ao eleitor.
– Continuem a farsa (ou seja, a mentira)! – gritou Rodrigo. Sentou-se indignado, pegou um lápis e começou
a escrever numa folha de papel todos os palavrões que sentia ímpetos de atirar na cara do presidente da mesa e dos fiscais
hermistas (partidários de Hermes da Fonseca, candidato do governo vitorioso na eleição para presidente da República em 1910).
Érico Veríssimo. O
Retrato (1951). V. II, da Trilogia O Tempo e o Vento. São Paulo: Círculo do Livro,
s.d., p. 259-60.